domingo, 27 de novembro de 2011

O sobrevivente

A Cyro dos Anjos

Impossível compor um poema a esta altura da evolução da humanidade.
Impossível escrever um poema – uma linha que seja – de verdadeira poesia.
O último trovador morreu em 1914.
Tinha um nome de que ninguém se lembra mais.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples .
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.
Um sábio declarou a O Jornal que ainda falta
muito para atingirmos um nível razoável de
cultura.Mas até lá, felizmente, estarei morto.

Os homens não melhoraram
e matam-se como percevejos.
Os percevejos heróicos renascem.
Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado.
E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio.

(Desconfio que escrevi um poema)

Carlos Drummond de Andrade

sábado, 1 de outubro de 2011

Citações e aforismos para enriquecer o texto dissertativo

Pensamentos: Citações e aforismos

1. Georges Ivanovitch Gurdjieff (1866 (?)- 1949) – escritor russo.

"Um homem pode continuar a ser um homem, ainda que trabalhe com máquinas. Há outro tipo de mecanização muitíssimo mais perigoso — ser ele próprio uma máquina".

2. Thomas Hobbes (1588- 1679)- filósofo, teórico político e matemático inglês.

• “Impressões sensoriais não bastam para construir e preservar uma vida”

• “O homem é o lobo do homem”.

• “Em geral as paixões humanas são mais fortes do que a razão.”


3. Albert Einstein (1879-1955) – o mais célebre cientista alemão do século XX.

• “Educação é o que resta depois de ter esquecido tudo que se aprendeu na escola.”


4. Friedrich Nietzsche (1844- 1900) - Filósofo alemão

• “Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás para atravessar o rio da vida - ninguém, exceto tu, só tu.”

• “Não é a força, mas a constância dos bons sentimentos que conduz os homens à felicidade.”


5. Jean Paul Sartre (1905-1980) – filósofo francês, escritor e crítico.

• “A violência, seja qual for a maneira como ela se manifesta, é sempre uma derrota.”

• “Quando os ricos fazem a guerra, são sempre os pobres os que morrem.”

• “O homem tem de poder escolher a vida em todas as circunstâncias.”

6. Guimarães Rosa (1908 – 1967) - escritor, médico e diplomata brasileiro

Alguns Aforismos de Rosa:

1. “Viver é muito perigoso”.

2. “Toda saudade é uma espécie de velhice”.

3. “Deus existe mesmo quando não há. Mas o demônio não precisa de existir para haver”.

4. “Viver é um descuido prosseguido”.

5. “Vingar, digo ao senhor: é lamber, frio, o que o outro cozinhou quente demais”.

6. “Sertão é o sozinho”.

7. “Para as coisas que há de pior, a gente não alcança fechar as portas”.

8. “Vivendo, se aprende; mas o que se aprende, mais, é só a fazer outras maiores perguntas”.

9. “Amor só mente para dizer maior verdade”.

10. “Deus, se vier, que venha armado”.

Machado de Assis (1839-1908) – Um dos mais importantes escritores brasileiros.

• “Ao vencedor, as batatas.”

• “Não te irrites se te pagarem mal um benefício; antes cair das nuvens que de um terceiro andar.”

• “Há coisas que melhor se dizem calando.”

• [Frase final de Memórias Póstumas de Brás Cubas,1881]:

“Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria.”

• "O tempo é um grande médico".

• "Não conhecer o amor é não conhecer a vida".

Caixa de Pandora

Caixa de Pandora

Carlos Drummond de Andrade já dizia: “O espírito é livre na prisão do corpo.” O Determinismo se faz presente na vida em sociedade, pela comodidade, o homem esquece-se de quem é e por que luta. Fica fácil, assim, aceitar sem discutir e ser influenciado pela maioria.

A queda da Bastilha foi um símbolo de liberdade para o povo francês. Percebe-se que o conceito de liberdade e, principalmente, a prática dessa foi sendo deixada de lado. A partir do nascimento, o homem é “taxado”, seja por sua classe, cor, etnia e, mais tarde, religião, reforçando ideias pré-concebidas.

Marx defendia o socialismo, Godwin, o anarquismo, Hitler, o totalitarismo e acabou prevalecendo o capitalismo. Entre tantas ideologias, a “melhor” é aquela que marginaliza, aquela que exclui e individualiza. A sociedade está longe de ser “terminada”, de chegar ao desenvolvimento pleno, e é nesse meio tempo que os cidadãos de todo o mundo, com suas vidas “severinas”, terminam por achar, assim como Clarice Lispector, desvantajoso acordar.

Homo sapiens sapiens, a mais desenvolvida das espécies, carregou consigo o preconceito, a arte de tirar conclusões precipitadas. A maioria dos conflitos armados em âmbito mundial o tiveram como base, aliado à busca por capital e poder. “Bullying”, palavra inglesa em alta no momento, trata do cotidiano de milhões de pessoas, trata do julgamento por uma sociedade apoiada em princípios morais frágeis, uma sociedade com alicerces “sobre a areia”, que a qualquer momento poderão sucumbir.

“Ser ou não ser? Eis a questão”. O chavão shakespeariano resume nossa realidade. Somos o fruto de nossas escolhas aprisionadas por uma “cortina de ferro”. Conhecimento é imprescindível para não ficarmos nas mãos do destino e até do próprio homem. Apenas quando a sociedade olhar para aqueles que estão à margem é que os males da caixa de pandora serão reduzidos.

Ana Beatriz Altvater Biagio


*Redação baseada em proposta da UFSC.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Produção Textual

De Olho no Vestibular













Dissertação - Tipo de texto geralmente pedido nos vestibulares. Texto argumentativo. Ao escrevê-lo, o aluno deve tomar posição diante do tema proposto, fundamentando sua opinião com argumentos consistentes.

Principais Características do Texto Dissertativo:

1. Não utiliza a primeira pessoa.
2. A linguagem deve ser formal (a não ser quando se tratar de tema que possibilite o coloquialismo).
3. Apresenta argumentos que buscam sustentar uma tese (posição que o autor assume diante do tema).
4. Divide-se em introdução, desenvolvimento e conclusão.


I. INTRODUÇÃO - Apresentação da tese a ser defendida no texto. Na introdução, o autor define e apresenta o tema a ser discutido; posiciona-se a respeito dele, preparando o leitor para as ideias a serem desenvolvidas no corpo do trabalho. (Parágrafo breve – de 4 a 6 linhas para um texto de, no máximo, 30 linhas).

Tipos de introdução:

A introdução pode começar de diversas maneiras:
• com uma afirmação;
• com uma enumeração;
• com uma narração;
• com uma declaração;
•com uma pergunta ( que deverá ser respondida no decorrer do texto).


Evitar ideias gerais que não se relacionem com o texto.


II. DESENVOLVIMENTO - Apresentação dos argumentos que vão fundamentar a ideia principal, que pode vir especificada através:
• de pormenores;
• de ilustração;
• de prós e contras;
• de pontos positivos e negativos;
• de dados estatísticos;
• de causas e consequências;
• de pesquisas;
• da interrogação;
• da citação;
• de dados históricos.

(de dois a três parágrafos - para um texto de, no máximo, 30 linhas).


III. CONCLUSÃO - Fechamento do texto.

• Retomada da tese proposta na introdução.
• Pode-se começar com “portanto”, “assim”, “logo”... ou entrar diretamente no assunto ( o que pode deixar o texto mais bonito e estiloso).
• Não deve apresentar novos argumentos.
• Pode e deve conter uma solução para um problema proposto.
• Dependendo do tema, deve-se passar uma perspectiva de futuro.

Obs.: Uma boa revisão agregará pontos ao texto.






Títulos: como fazê-los?

Centralizado – quando não houver um espaço apropriado para colocá-lo.

O título pode desempenhar uma função factual e de chamada, ou poética e expressiva.

É factual quando resume as linhas fundamentais do texto; funciona como sinopse e ponto de partida para a exposição dos assuntos.

Os conflitos existentes no universo juvenil.

Em sua função poética e expressiva, o título se integra ao texto, resumindo-o.

Em busca dos sonhos de Ícaro.

O título pode ser polêmico, provocativo, irônico...

Polêmico: Poder para quem: pais ou filhos?
Provocativo: Amores, tê-los ou não tê-los?
Irônico: Memórias sentimentais de um vestibulando reprovado.

Pode aparecer:
TODO EM CAIXA ALTA.

Em caixa alta somente a inicial das palavras (exceto os monossílabos):
O Homem e seus Mistérios

Em caixa alta somente a inicial da primeira palavra: O homem e seus mistérios


Pontuação no título: em frases nominais não se deve usar ponto final.

Em frases verbais (orações) deve-se usar ponto.


Professora: Maria Cristina A. Biagio

domingo, 22 de maio de 2011

Alteração - Listagem da UFSC 2012

Vestibular – UFSC – 2012 - UFSC recomendou 7 livros para leitura.



1. “Inocência”, de Visconde de Taunay
2. “A Cidade Ilhada”, de Milton Hatoun
3. “Treze Cascaes”, de Adolfo Boss e Outros
4. “Memórias de um Sargento de Milícias”, de Manoel Antônio de Almeida
5. “Jorge, um brasileiro”, de Oswaldo França Júnior
6. “O Pagador de Promessas”, de Dias Gomes
7. “Amrik”, de Ana Miranda

OBS.: O livro de Cecília Meireles foi excluído da lista.



C O M U N I C A D O O F I C I A L

A Coperve comunica que em razão da Editora Nova Fronteira nos informar que não poderá realizar novas edições da obra Viagem & Vaga Música da escritora Cecília Meireles, a referida obra está sendo excluída da listagem de obras indicadas para Vestibular UFSC/2012.
Excepcionalmente, continuarão indicadas somente as demais sete obras já divulgadas.

Florianópolis, 01 de abril de 2011.
Prof. Julio Felipe Szeremeta
Presidente da COPERVE




http://coperve.ufsc.br/comunicado_ceciliameireles.pdf

quinta-feira, 14 de abril de 2011

A Cartomante, Machado de Assis

A Cartomante
Machado de Assis

Hamlet observa a Horácio que há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de Novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras.
— Ria, ria. Os homens são assim; não acreditam em nada. Pois saiba que fui, e que ela adivinhou o motivo da consulta, antes mesmo que eu lhe dissesse o que era. Apenas começou a botar as cartas, disse-me: "A senhora gosta de uma pessoa..." Confessei que sim, e então ela continuou a botar as cartas, combinou-as, e no fim declarou-me que eu tinha medo de que você me esquecesse, mas que não era verdade...
— Errou! Interrompeu Camilo, rindo.
— Não diga isso, Camilo. Se você soubesse como eu tenho andado, por sua causa. Você sabe; já lhe disse. Não ria de mim, não ria...
Camilo pegou-lhe nas mãos, e olhou para ela sério e fixo. Jurou que lhe queria muito, que os seus sustos pareciam de criança; em todo o caso, quando tivesse algum receio, a melhor cartomante era ele mesmo. Depois, repreendeu-a; disse-lhe que era imprudente andar por essas casas. Vilela podia sabê-lo, e depois...
— Qual saber! tive muita cautela, ao entrar na casa.
— Onde é a casa?
— Aqui perto, na rua da Guarda Velha; não passava ninguém nessa ocasião. Descansa; eu não sou maluca.
Camilo riu outra vez:
— Tu crês deveras nessas coisas? perguntou-lhe.
Foi então que ela, sem saber que traduzia Hamlet em vulgar, disse-lhe que havia muito cousa misteriosa e verdadeira neste mundo. Se ele não acreditava, paciência; mas o certo é que a cartomante adivinhara tudo. Que mais? A prova é que ela agora estava tranqüila e satisfeita.
Cuido que ele ia falar, mas reprimiu-se, Não queria arrancar-lhe as ilusões. Também ele, em criança, e ainda depois, foi supersticioso, teve um arsenal inteiro de crendices, que a mãe lhe incutiu e que aos vinte anos desapareceram. No dia em que deixou cair toda essa vegetação parasita, e ficou só o tronco da religião, ele, como tivesse recebido da mãe ambos os ensinos, envolveu-os na mesma dúvida, e logo depois em uma só negação total. Camilo não acreditava em nada. Por quê? Não poderia dizê-lo, não possuía um só argumento; limitava-se a negar tudo. E digo mal, porque negar é ainda afirmar, e ele não formulava a incredulidade; diante do mistério, contentou-se em levantar os ombros, e foi andando.
Separaram-se contentes, ele ainda mais que ela. Rita estava certa de ser amada; Camilo, não só o estava, mas via-a estremecer e arriscar-se por ele, correr às cartomantes, e, por mais que a repreendesse, não podia deixar de sentir-se lisonjeado. A casa do encontro era na antiga rua dos Barbonos, onde morava uma comprovinciana de Rita. Esta desceu pela rua das Mangueiras, na direção de Botafogo, onde residia; Camilo desceu pela da Guarda velha, olhando de passagem para a casa da cartomante.
Vilela, Camilo e Rita, três nomes, uma aventura, e nenhuma explicação das origens. Vamos a ela. Os dois primeiros eram amigos de infância. Vilela seguiu a carreira de magistrado. Camilo entrou no funcionalismo, contra a vontade do pai, que queria vê-lo médico; mas o pai morreu, e Camilo preferiu não ser nada, até que a mãe lhe arranjou um emprego público. No princípio de 1869, voltou Vilela da província, onde casara com uma dama formosa e tonta; abandonou a magistratura e veio abrir banca de advogado. Camilo arranjou-lhe casa para os lados de Botafogo, e foi a bordo recebê-lo.
— É o senhor? exclamou Rita, estendendo-lhe a mão. Não imagina como meu marido é seu amigo; falava sempre do senhor.
Camilo e Vilela olharam-se com ternura. Eram amigos deveras. Depois, Camilo confessou de si para si que a mulher do Vilela não desmentia as cartas do marido. Realmente, era graciosa e viva nos gestos, olhos cálidos, boca fina e interrogativa. Era um pouco mais velha que ambos: contava trinta anos, Vilela vinte e nove e Camilo vente e seis. Entretanto, o porte grave de Vilela fazia-o parecer mais velho que a mulher, enquanto Camilo era um ingênuo na vida moral e prática. Faltava-lhe tanto a ação do tempo, como os óculos de cristal, que a natureza põe no berço de alguns para adiantar os anos. Nem experiência, nem intuição.
Uniram-se os três. Convivência trouxe intimidade. Pouco depois morreu a mãe de Camilo, e nesse desastre, que o foi, os dois mostraram-se grandes amigos dele. Vilela cuidou do enterro, dos sufrágios e do inventário; Rita tratou especialmente do coração, e ninguém o faria melhor.
Como daí chegaram ao amor, não o soube ele nunca. A verdade é que gostava de passar as horas ao lado dela; era a sua enfermeira moral, quase uma irmã, mas principalmente era mulher e bonita. Odor di femina: eis o que ele aspirava nela, e em volta dela, para incorporá-lo em si próprio. Liam os mesmos livros, iam juntos a teatros e passeios. Camilo ensinou-lhe as damas e o xadrez e jogavam às noites; — ela mal, — ele, para lhe ser agradável, pouco menos mal. Até aí as cousas. Agora a ação da pessoa, os olhos teimosos de Rita, que procuravam muita vez os dele, que os consultavam antes de o fazer ao marido, as mãos frias, as atitudes insólitas. Um dia, fazendo ele anos, recebeu de Vilela uma rica bengala de presente, e de Rita apenas um cartão com um vulgar cumprimento a lápis, e foi então que ele pôde ler no próprio coração; não conseguia arrancar os olhos do bilhetinho. Palavras vulgares; mas há vulgaridades sublimes, ou, pelo menos, deleitosas. A velha caleça de praça, em que pela primeira vez passeaste com a mulher amada, fechadinhos ambos, vale o carro de Apolo. Assim é o homem, assim são as cousas que o cercam.
Camilo quis sinceramente fugir, mas já não pôde. Rita como uma serpente, foi-se acercando dele, envolveu-o todo, fez-lhe estalar os ossos num espasmo, e pingou-lhe o veneno na boca. Ele ficou atordoado e subjugado. Vexame, sustos, remorsos, desejos, tudo sentiu de mistura; mas a batalha foi curta e a vitória delirante. Adeus, escrúpulos! Não tardou que o sapato se acomodasse ao pé, e aí foram ambos, estrada fora, braços dados, pisando folgadamente por cima de ervas e pedregulhos, sem padecer nada mais que algumas saudades, quando estavam ausentes um do outro. A confiança e estima de Vilela continuavam a ser as mesmas.
Um dia, porém, recebeu Camilo uma carta anônima, que lhe chamava imoral e pérfido, e dizia que a aventura era sabida de todos. Camilo teve medo, e, para desviar as suspeitas, começou a rarear as visitas à casa de Vilela. Este notou-lhe as ausências. Camilo respondeu que o motivo era uma paixão frívola de rapaz. Candura gerou astúcia. As ausências prolongaram-se, e as visitas cessaram inteiramente. Pode ser que entrasse também nisso um pouco de amor-próprio, uma intenção de diminuir os obséquios do marido, para tornar menos dura a aleivosia do ato.
Foi por esse tempo que Rita, desconfiada e medrosa, correu à cartomante para consultá-la sobre a verdadeira causa do procedimento de Camilo. Vimos que a cartomante restituiu-lhe a confiança, e que o rapaz repreendeu-a por ter feito o que fez. Correram ainda algumas semanas. Camilo recebeu mais duas ou três cartas anônimas, tão apaixonadas, que não podiam ser advertência da virtude, mas despeito de algum pretendente; tal foi a opinião de Rita, que, por outras palavras mal compostas, formulou este pensamento: — a virtude é preguiçosa e avara, não gasta tempo nem papel; só o interesse é ativo e pródigo.
Nem por isso Camilo ficou mais sossegado; temia que o anônimo fosse ter com Vilela, e a catástrofe viria então sem remédio. Rita concordou que era possível.
— Bem, disse ela; eu levo os sobrescritos para comparar a letra com a das cartas que lá aparecerem; se alguma for igual, guardo-a e rasgo-a...
Nenhuma apareceu; mas daí a algum tempo Vilela começou a mostrar-se sombrio, falando pouco, como desconfiado. Rita deu-se pressa em dizê-lo ao outro, e sobre isso deliberaram. A opinião dela é que Camilo devia tornar à casa deles, tatear o marido, e pode ser até que lhe ouvisse a confidência de algum negócio particular. Camilo divergia; aparecer depois de tantos meses era confirmar a suspeita ou denúncia. Mais valia acautelarem-se, sacrificando-se por algumas semanas. Combinaram os meios de se corresponderem, em caso de necessidade, e separaram-se com lágrimas.
No dia seguinte, estando na repartição, recebeu Camilo este bilhete de Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Era mais de meio-dia. Camilo saiu logo; na rua, advertiu que teria sido mais natural chamá-lo ao escritório; por que em casa? Tudo indicava matéria especial, e a letra, fosse realidade ou ilusão, afigurou-se-lhe trêmula. Ele combinou todas essas cousas com a notícia da véspera.
— Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora, — repetia ele com os olhos no papel.
Imaginariamente, viu a ponta da orelha de um drama, Rita subjugada e lacrimosa, Vilela indignado, pegando na pena e escrevendo o bilhete, certo de que ele acudiria, e esperando-o para matá-lo. Camilo estremeceu, tinha medo: depois sorriu amarelo, e em todo caso repugnava-lhe a idéia de recuar, e foi andando. De caminho, lembrou-se de ir a casa; podia achar algum recado de Rita, que lhe explicasse tudo. Não achou nada, nem ninguém. Voltou à rua, e a idéia de estarem descobertos parecia-lhe cada vez mais verossímil; era natural uma denúncia anônima, até da própria pessoa que o ameaçara antes; podia ser que Vilela conhecesse agora tudo. A mesma suspensão das suas visitas, sem motivo aparente, apenas com um pretexto fútil, viria confirmar o resto.
Camilo ia andando inquieto e nervoso. Não relia o bilhete, mas as palavras estavam decoradas, diante dos olhos, fixas; ou então, — o que era ainda peior, — eram-lhe murmuradas ao ouvido, com a própria voz de Vilela. "Vem já, já à nossa casa; preciso falar-te sem demora." Ditas, assim, pela voz do outro, tinham um tom de mistério e ameaça. Vem, já, já, para quê? Era perto de uma hora da tarde. A comoção crescia de minuto a minuto. Tanto imaginou o que se iria passar, que chegou a crê-lo e vê-lo. Positivamente, tinha medo. Entrou a cogitar em ir armado, considerando que, se nada houvesse, nada perdia, e a precaução era útil. Logo depois rejeitava a idéa, vexado de si mesmo, e seguia, picando o passo, na direção do largo da Carioca, para entrar num tílburi. Chegou, entrou e mandou seguir a trote largo.
— Quanto antes, melhor, pensou ele; não posso estar assim...
Mas o mesmo trote do cavalo veio agravar-lhe a comoção. O tempo voava, e ele não tardaria a entestar com o perigo. Quase no fim da rua da Guarda Velha, o tílburi teve de parar; a rua estava atravancada com uma carroça, que caíra. Camilo, em si mesmo, estimou o obstáculo, e esperou. No fim de cinco minutos, reparou que ao lado, à esquerda, ao pé do tílburi, ficava a casa da cartomante, a quem Rita consultara uma vez, e nunca ele desejou tanto crer na lição das cartas. Olhou, viu as janelas fechadas, quando todas as outras estavam abertas e pejadas de curiosos do incidente da rua. Dir-se-ia a morada do indiferente Destino.
Camilo reclinou-se no tílburi, para não ver nada. A agitação dele era grande, extraordinária, e do fundo das camadas morais emergiam alguns fantasmas de outro tempo, as velhas crenças, as superstições antigas. O cocheiro propôs-lhe voltar a primeira travessa, e ir por outro caminho; ele respondeu que não, que esperasse. E inclinava-se para fitar a casa... Depois fez um gesto incrédulo: era a idéia de ouvir a cartomante, que lhe passava ao longe, muito longe, com vastas asas cinzentas; desapareceu, reapareceu, e tornou a esvair-se no cérebro; mas daí a pouco moveu outra vez as asas, mais perto, fazendo uns giros concêntricos... Na rua, gritavam os homens, safando a carroça:
— Anda! agora! empurra! vá! vá!
Daí a pouco estaria removido o obstáculo. Camilo fechava os olhos, pensava em outras cousas; mas a voz do marido sussurrava-lhe às orelhas as palavras da carta: "Vem já, já..." E ele via as contorções do drama e tremia. A casa olhava para ele. As pernas queriam descer e entrar... Camilo achou-se diante de um longo véu opaco... pensou rapidamente no inexplicável de tantas cousas. A voz da mãe repetia-lhe uma porção de casos extraordinários; e a mesma frase do príncipe de Dinamarca reboava-lhe dentro: "Há mais cousas no céu e na terra do que sonha a filosofia..." Que perdia ele, se...?
Deu por si na calçada, ao pé da porta; disse ao cocheiro que esperasse, e rápido enfiou pelo corredor, e subiu a escada. A luz era pouca, os degraus comidos dos pés, o corrimão pegajoso; mas ele não viu nem sentiu nada. Trepou e bateu. Não aparecendo ninguém, teve idéia de descer; mas era tarde, a curiosidade fustigava-lhe o sangue, as fontes latejavam-lhe; ele tornou a bater uma, duas, três pancadas. Veio uma mulher; era a cartomante. Camilo disse que ia consultá-la, ela fê-lo entrar. Dali subiram ao sótão, por uma escada ainda pior que a primeira e mais escura. Em cima, havia uma salinha, mal alumiada por uma janela, que dava para os telhados do fundo. Velhos trastes, paredes sombrias, um ar de pobreza, que antes aumentava do que destruía o prestígio.
A cartomante fê-lo sentar diante da mesa, e sentou-se do lado oposto, com as costas para a janela, de maneira que a pouca luz de fora batia em cheio no rosto de Camilo. Abriu uma gaveta e tirou um baralho de cartas compridas e enxovalhadas. Enquanto as baralhava, rapidamente, olhava para ele, não de rosto, mas por baixo dos olhos. Era uma mulher de quarenta anos, italiana, morena e magra, com grandes olhos sonsos e agudos. Voltou três cartas sobre a mesa, e disse-lhe:
— Vejamos primeiro o que é que o traz aqui. O senhor tem um grande susto...
Camilo, maravilhado, fez um gesto afirmativo.
— E quer saber, continuou ela, se lhe acontecerá alguma coisa ou não...
— A mim e a ela, explicou vivamente ele.
A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.
— As cartas dizem-me...
Camilo inclinou-se para beber uma a uma as palavras. Então ela declarou-lhe que não tivesse medo de nada. Nada aconteceria nem a um nem a outro; ele, o terceiro, ignorava tudo. Não obstante, era indispensável mais cautela; ferviam invejas e despeitos. Falou-lhe do amor que os ligava, da beleza de Rita... Camilo estava deslumbrado. A cartomante acabou, recolheu as cartas e fechou-as na gaveta.
— A senhora restituiu-me a paz ao espírito, disse ele estendendo a mão por cima da mesa e apertando a da cartomante.
Esta levantou-se, rindo.
— Vá, disse ela; vá, ragazzo innamorato...
E de pé, com o dedo indicador, tocou-lhe na testa. Camilo estremeceu, como se fosse mão da própria sibila, e levantou-se também. A cartomante foi à cômoda, sobre a qual estava um prato com passas, tirou um cacho destas, começou a despencá-las e comê-las, mostrando duas fileiras de dentes que desmentiam as unhas. Nessa mesma ação comum, a mulher tinha um ar particular. Camilo, ansioso por sair, não sabia como pagasse; ignorava o preço.
— Passas custam dinheiro, disse ele afinal, tirando a carteira. Quantas quer mandar buscar?
— Pergunte ao seu coração, respondeu ela.
Camilo tirou uma nota de dez mil-réis, e deu-lha. Os olhos da cartomante fuzilaram. O preço usual era dois mil-réis.
— Vejo bem que o senhor gosta muito dela... E faz bem; ela gosta muito do senhor. Vá, vá tranqüilo. Olhe a escada, é escura; ponha o chapéu...
A cartomante tinha já guardado a nota na algibeira, e descia com ele, falando, com um leve sotaque. Camilo despediu-se dela embaixo, e desceu a escada que levava à rua, enquanto a cartomante alegre com a paga, tornava acima, cantarolando uma barcarola. Camilo achou o tílburi esperando; a rua estava livre. Entrou e seguiu a trote largo.
Tudo lhe parecia agora melhor, as outras cousas traziam outro aspecto, o céu estava límpido e as caras joviais. Chegou a rir dos seus receios, que chamou pueris; recordou os termos da carta de Vilela e reconheceu que eram íntimos e familiares. Onde é que ele lhe descobrira a ameaça? Advertiu também que eram urgentes, e que fizera mal em demorar-se tanto; podia ser algum negócio grave e gravíssimo.
— Vamos, vamos depressa, repetia ele ao cocheiro.
E consigo, para explicar a demora ao amigo, engenhou qualquer cousa; parece que formou também o plano de aproveitar o incidente para tornar à antiga assiduidade... De volta com os planos, reboavam-lhe na alma as palavras da cartomante. Em verdade, ela adivinhara o objeto da consulta, o estado dele, a existência de um terceiro; por que não adivinharia o resto? O presente que se ignora vale o futuro. Era assim, lentas e contínuas, que as velhas crenças do rapaz iam tornando ao de cima, e o mistério empolgava-o com as unhas de ferro. Às vezes queria rir, e ria de si mesmo, algo vexado; mas a mulher, as cartas, as palavras secas e afirmativas, a exortação: — Vá, vá, ragazzo innamorato; e no fim, ao longe, a barcarola da despedida, lenta e graciosa, tais eram os elementos recentes, que formavam, com os antigos, uma fé nova e vivaz.
A verdade é que o coração ia alegre e impaciente, pensando nas horas felizes de outrora e nas que haviam de vir. Ao passar pela Glória, Camilo olhou para o mar, estendeu os olhos para fora, até onde a água e o céu dão um abraço infinito, e teve assim uma sensação do futuro, longo, longo, interminável.
Daí a pouco chegou à casa de Vilela. Apeou-se, empurrou a porta de ferro do jardim e entrou. A casa estava silenciosa. Subiu os seis degraus de pedra, e mal teve tempo de bater, a porta abriu-se, e apareceu-lhe Vilela.
— Desculpa, não pude vir mais cedo; que há?
Vilela não lhe respondeu; tinha as feições decompostas; fez-lhe sinal, e foram para uma saleta interior. Entrando, Camilo não pôde sufocar um grito de terror: — ao fundo sobre o canapé, estava Rita morta e ensangüentada. Vilela pegou-o pela gola, e, com dois tiros de revólver, estirou-o morto no chão.

Este conto foi publicado originalmente na Gazeta de Notícias - Rio de Janeiro, em 1884. Posteriormente foi incluído no livro "Várias Histórias" e em "Contos: Uma Antologia", Companhia das Letras - São Paulo, 1998, de onde foi extraído. Com esta publicação homenageamos Machado de Assis que, no dia 21 deste, estaria completando seu 172° aniversário.
Conheça o autor e sua obra visitando "Biografias".


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satírico ou irônico. Aguardamos dos amigos leitores críticas, comentários e sugestões.
A todos, muito obrigado. Arnaldo Nogueira Júnior. ® @njo

Grande Edgar, de Luís Fernando Veríssimo

Grande Edgar, do sempre genial Luís Fernando Veríssimo.

Obs.: Texto não formatado para o blog - verificar formatação adequada no endereço colocado abaixo.

Já deve ter acontecido com você.
- Não está se lembrando de mim?
Você não está se lembrando dele. Procura, freneticamente, em todas as fichas armazenadas na memória o rosto dele e o nome correspondente, e não encontra. E não há tempo para procurar no arquivo desativado. Ele está ali, na sua frente, sorrindo, os olhos iluminados, antecipando a sua resposta. Lembra ou não lembra? Neste ponto, você tem uma escolha. Há três caminhos a seguir. Um, o curto, grosso e sincero.
- Não.
Você não está se lembrando dele e não tem por que esconder isso. O “Não” seco pode até insinuar uma reprimenda à sua pergunta. Não se faz uma pergunta assim, potencialmente embaraçosa, a ninguém, meu caro. Pelo menos não entre pessoas educadas. Você deveria ter vergonha. Não me lembro de você e mesmo que lembrasse não diria. Passe bem.
Outro caminho, menos honesto mas igualmente razoável, é o da dissimulação.
- Não me diga. Você é o… o…
“Não me diga”, no caso, quer dizer “Me diga, me diga”. Você conta com a piedade dele e sabe que cedo ou tarde ele se identificará, para acabar com a sua agonia. Ou você pode dizer algo como:
- Desculpe, deve ser a velhice, mas…
Este também é um apelo à piedade. Significa “Não torture um pobre desmemoriado, diga logo quem você é!” É uma maneira simpática de dizer que você não tem a menor idéia de quem ele é, mas que isso não se deve à insignificância dele e sim a uma deficiência de neurônios sua.
E há o terceiro caminho. O menos racional e recomendável. O que leva à tragédia e à ruína. E o que, naturalmente, você escolhe.
- Claro que estou me lembrando de você!
Você não quer magoá-lo, é isso. Há provas estatísticas que o desejo de não magoar os outros está na origem da maioria dos desastres sociais, mas você não quer que ele pense que passou pela sua vida sem deixar um vestígio sequer. E, mesmo, depois de dizer a frase não há como recuar. Você pulou no abismo. Seja o que Deus quiser. Você ainda arremata:
- Há quanto tempo!
Agora tudo dependerá da reação dele. Se for um calhorda, ele o desafiará.
- Então me diga quem eu sou.
Neste caso você não tem outra saída senão simular um ataque cardíaco e esperar, falsamente desacordado, que a ambulância venha salvá-lo. Mas ele pode ser misericordioso e dizer apenas:
- Pois é.
Ou:
- Bota tempo nisso.
Você ganhou tempo para pesquisar melhor a memória. Quem é esse cara, meu Deus? Enquanto resgata caixotes com fichas antigas do meio da poeira e das teias de aranha do fundo do cérebro, o mantém à distância com frases neutras como “jabs” verbais.
- Como cê tem passado?
- Bem, bem.
- Parece mentira.
- Puxa. (Um colega da escola. Do serviço militar. Será um parente? Quem é esse cara, meu Deus?)
Ele está falando:
- Pensei que você não fosse me reconhecer…
- O que é isso?!
- Não, porque a gente às vezes se decepciona com as pessoas.
- Eu esquecer você? Logo você?
- As pessoas mudam. Sei lá.
- Que idéia! (É o Ademar! não. o Ademar já morreu. Você foi ao enterro dele. O… o… como era o nome dele? Tinha uma perna mecânica? Você pode chutá-lo amigavelmente. E se chutar a perna boa? Chuta as duas. “Que bom encontrar você!” e paf, chuta uma perna. “Que saudade!” e paf, chuta a outra. Quem é esse cara?)
- É incrível como a gente perde contato.
- É mesmo.
Uma tentativa. É um lance arriscado, mas nesses momentos deve-se ser audacioso.
- Cê tem visto alguém da velha turma?
- Só o Pontes.
- Velho Pontes! (Pontes. Você conhece algum Pontes? Pelo menos agora tem um nome com o qual trabalhar. Uma segunda ficha para localizar no sótão. Pontes, Pontes…)
- Lembra do Croarê?
- Claro!
- Esse eu também encontro, às vezes, no tiro ao alvo.
- Velho Croarê! (Croarê. Tiro ao alvo. Você não conhece nenhum Croarê e nunca fez tiro ao alvo. É inútil. As pistas não estão ajudando. Você decide esquecer toda a cautela e partir para um lance decisivo. Um lance de desespero. O último, antes de apelar para o enfarte.)
- Rezende…
- Quem?
Não é ele. Pelo menos isto está esclarecido.
- Não tinha um Rezende na turma?
- Não me lembro.
- Devo estar confundindo.
Silêncio. Você sente que está prestes a ser desmascarado.
Ele fala:
- Sabe que a Ritinha casou?
- Não!
- Casou.
- Com quem?
- Acho que você não conheceu. O Bituca.
Você abandonou todos os escrúpulos. Ao diabo com a cautela. Já que o vexame é inevitável, que ele seja total, arrasador. Você está tomado por uma espécie de euforia terminal. De delírio do abismo. Como que não conhece o Bituca?
- Claro que conheci! Velho Bituca…
- Pois casaram.
É a sua chance. É a saída. Você passa ao ataque.
- E Não me avisaram nada?!
- Bem…
- Não. Espera um pouquinho. Todas essas coisas acontecendo, a Ritinha casando com o Bituca, o Croarê dando tiro, e ninguém me avisa nada?!
- É que a gente perdeu contato e…
- Mas o meu nome está na lista, meu querido. Era só dar um telefonema. Mandar um convite.
- É…
- E você ainda achava que eu não ia reconhecer você. Vocês é que esqueceram de mim!
- Desculpe, Edgar. É que…
- Não desculpo não. Você tem razão. As pessoas mudam… (Edgar. Ele chamou você de Edgar. Você não se chama Edgar. Ele confundiu você com outro. Ele também não tem a mínima idéia de quem você é. O melhor é acabar logo com isso. Aproveitar que ele está na defensiva. Olhar o relógio e fazer cara de “Já?!”)
- Tenho que ir. Olha, foi bom ver você, viu?
- Certo, Edgar. E desculpe, hein?
- O que é isso? Precisamos nos ver mais seguido.
- Isso.
- Reunir a velha turma.
- Certo.
- E olha, quando falar com a Ritinha e o Mutuca…
- Bituca.
- E o Bituca, diz que eu mandei um beijo. Tchau, hein?
- Tchau, Edgar!
Ao se afastar, você ainda ouve, satisfeito, ele dizer “Grande Edgar”. Mas jura que é a última vez que fará isso. Na próxima vez que alguém lhe perguntar “Você está me reconhecendo?” não dirá nem não. Sairá correndo.
—–
http://tigredefogo.wordpress.com/2007/05/26/luis-fernando-verissimo
A Máscara

Obs.: O texto não está formatado - verificar, no endereço colocado abaixo, a formatação adequada)


Havia naquela noite um baile à fantasia no Elisée Montmartre. Era por ocasião da mi-careme, e, como a água através da comporta de uma represa, a multidão despejava-se no corredor iluminado que leva ao salão de baile. O irresistível apelo da orquestra, estrondeando como uma tempestade musical, atravessava as paredes e o teto, espalhava-se pelo bairro e ia despertar, nas ruas e a té no fundo das casas vizinhas, aquele invencível desejo de saltar, de aquecer-se e divertir-se que dormita no íntimo do animal humano.
E os freqüentadores da festa também vinham dos quatro cantos de Paris, pessoas de todas as classes sociais, amantes de diversões barulhentas, um tanto quanto licenciosas, tocadas de libertinagem. Eram empregados, cáftens, mulheres alegres, que conheciam toda espécie de lençóis, do mais grosseiro algodão à mais fina batista, mulheres ricas, velhas e cheias de diamantes, e mulheres pobres, de dezesseis anos, desejosas de divertir-se, de entregar-se a homens, de gastar dinheiro. Elegantes casacas negras à cata de carne moça, de primícias defloradas, porém saborosas, erravam por entre aquela multidão aquecida, procuravam, pareciam farejar, enquanto os mascarados eram impelidos, sobretudo, pelo desejo de divertir-se. Quartetos famosos de dançarinos já tinham reunido em torno das suas piruetas um largo círculo de assistentes. Aquela cerca ondulante, aquela massa buliçosa de mulheres e de homens, que rodeava os quatro dançarinos, torcia-se como uma serpente, ora se aproximando, ora se afastando, de acordo com os deslocamentos operados pelos artistas. As duas mulheres, cujas coxas pareciam ligadas ao corpo por molas de borracha, moviam as pernas com incrí vel agilidade. Atiravam-nas para cima com tanta violência que pareciam voar em direção às nuvens, depois subitamente as afastavam como se tivessem sido rasgadas até a metade do ventre e, fazendo-as deslizar, uma para a frente, a outra para trás, tocavam o solo com o corpo com um movimento rápido, cômico e repulsivo.
Os dois cavalheiros pulavam, moviam agilmente os pés, agitavam-se, sacudindo os braços levantados como cotos de asas sem penas e, sob as máscaras, percebia-se a sua respiração ofegante.
Um destes últimos, que participava da mais reputada das quadrilhas como substituto de uma celebridade ausente, o belo Songe au Gosse, e que se esforçava para acompanhar a infatigável Arête-de-Vau, executava figuras curiosas, que despertavam a alegria e o sarcasmo do público.
Era magro, vestia-se como um janota e usava uma bonita máscara envernizada, uma máscara de bigodes louros, frisados, e toucada por uma peruca anelada.
Lembrava uma figura de cera do Museu Grévin, estranha e fantástica caricatura de página de figurino, e dançava com esforçada compenetração, porém desajeitadamente, com entusiasmo grotesco. Parecia enferrujado ao lado dos outros, ao tentar imitar-lhes as piruetas; parecia tolhido, pesado como um cão fraldeiro que brincasse com galgos. Encorajavam-no alguns aplausos zombeteiros. E, ébrio de entusiasmo, ele sacudia as pernas com tal frenesi que, de repente, levado por um impulso violento, foi dar de cabeça contra a muralha dos assistentes, que se entreabriu para deixá-lo passar e depois tornou a fechar-se em torno daquele corpo inerte, estendido de borco, o dançarino inanimado.
Alguns homens o levantaram, carregararn-no. Alguém gritou: “Um médico!” Apresentou-se um cavalheiro ainda jovem, muito elegante, de casaca negra com grandes pérolas na camisa branca. “Sou professor da faculdade”, declarou, com entonação modesta. Deixaram-no passar e ele se dirigiu a uma saleta cheia de caixas de documentos, como o escritório de um procurador, onde o dançarino, ainda desacordado, fora estendido sobre cadeiras. Antes de tudo o médico procurou retirar a máscara, e percebeu que fora fixada de maneira embaraçosa, com uma porção de pequenos fios de metal; estes a atavam habilmente às bordas da peruca, e encerravam a cabeça inteira numa sólida ligadura, cujo segredo seria preciso conhecer. O próprio pescoço estava envolto numa pele artificial que prolongava o queixo, e aquela pele de luva, pintada da cor da carne, prendia-se na gola da camisa.
Foi preciso cortar aquilo tudo com grandes tesouras; e depois de ter feito no surpreendente conjunto um talho que ia do ombro à têmpora, o médico entreabriu a carapaça e descobriu um rosto gasto e envelhecido, magro, pálido e enrrugado. Tamanha foi a surpresa dos que tinham trazido o jovem mascarado de cabelos negros, que ninguém se riu nem pronunciou uma única palavra.
Contemplavam o triste rosto que descansava sobre a cadeira, de olhos fechados, cabelos brancos, alguns longos, caindo da fronte sobre o rosto, e curtos os que lhe guarneciam as faces e o queixo; e, ao lado daquela lamentável cabeça, a pequena e bonita máscara envernizada, a máscara jovem, que continuava a sorrir.
O desconhecido voltou a si depois de ter permanecido longamente desacordado; parecia, porém, tão fraco, tão doente, que o médico receou alguma complicação perigosa.
- Onde mora o senhor? – indagou.
O velho dançarino pareceu revolver a memória, e depois se lembrou e deu o nome de uma rua que nenhum dos presentes conhecia. Foi preciso pedir-lhe algumas explicações sobre o bairro. Forneceu-as com enorme dificuldade, com uma lentidão e uma incerteza que bem traiam a confusão da sua mente.
O médico declarou:
- Eu mesmo irei levá-lo.
Acometera-o a curiosidade de saber quem seria aquele estranho bailarino, de verificar onde morava aquele saltador fenômeno.
E pouco depois um carro de praça levou ambos ao outro lado das colinas de Montmartre.
Desceram na frente de um prédio alto, de aspecto pobre, com urna escada viscosa e construído entre dois terrenos baldios, um desses prédios eternamente inacabados, crivados de janelas, nichos imundos que abrigam uma multidão de seres maltrapilhos e miseráveis.
Segurando-se fortemente ao corrimão, um rolo de madeira que girava e no qual a mão ficava grudada, amparou até o quarto andar o ancião aturdido, que começava a recuperar as forças.
Abriu-se a porta à qual bateram e apareceu uma mulher, também velha, asseada, com uma touca de noite muito branca emoldurando-lhe a cabeça de ossos fortes e traços acentuados, um desses rostos grandes, rudes e bons, que freqüentemente possuem as fiéis e ativas esposas de operários. Exclamou:
- Meu Deus! O que teve ele?
Explicado o incidente com vinte palavras, ela se tranqüilizou e tranqüilizou o próprio médico, contando que aquela mesma aventura já acontecera antes, muitas vezes.
- É preciso deitá-lo, doutor, mais nada; ele dormirá e amanhã acordará outro.
O médico observou:
- Mas ele mal pode falar!
- Oh! Não é nada, um pouco de bebida, mais nada. Ele não jantou para sentir-se leve, e depois bebeu dois copos de absinto para animar-se. O senhor vê, o absinto lhe ativa as pernas, mas lhe tira as idéias e as palavras. Não é adequado à sua idade dançar como faz. Não, não há mesmo esperança de que ele tome juízo algum dia!
Surpreso, o médico insistiu:
Mas por que dança ele desse jeito, velho como está? Ela ergueu os ombros, vermelha sob a ação da cólera que pouco a pouco a excitava:
- Ah, sim, por quê? Para falar a verdade, é para que o imaginem moço embaixo da máscara, para que as mulheres ainda o julguem um galanteador e lhe digam libertinagens ao ouvido, para esfregar-se na pele dessas mulheres, peles sujas de perfumes, de pós e cremes … Ah! É incrível! Imagine, doutor, a vida que tenho levado durante os quarenta anos que isto vai durando… Primeiro, porém, precisamos deitá-lo, para que ele não se sinta mal. Não se importa de judar-me? Quando fica neste estado, é muito difícil para mim lidar com ele sozinha.
O velho estava sentado na cama, com jeito de bêbedo, os longos cabelos brancos caídos no rosto.
Sua companheira observava-o com olhos enternecidos e furiosos. Continuou:
- Repare como tem uma bonita cabeça para a idade; não precisava disfarçar-se de malandro para que o supusessem moço. É uma lástima! Não é verdade que ele tem uma bela cabeça, doutor? Espere, vou mostrá-la ao senhor antes que ele se deite.
- Encaminhou-se para uma mesa sobre a qual estavam colocados a bacia de mãos, o jarro de água, o sabão, o pente e a escova. Apanhou a escova, voltou para junto da cama e, depois de lidar por uns momentos com a cabeleira embaraçada do bêbedo, deu-lhe à cabeça a aparência de um modelo de pintor, com grandes madeixas caídas no pescoço. Recuou a fim de contemplá-lo e observou:
- Não é verdade que está bem para a sua idade?
- Muito bem – concordou o médico, que começava a divertir-se bastante.
- E se o senhor o tivesse conhecido quando tinha vinte e cinco anos! – exclamou ela. – Mas é preciso pô-lo na cama; sem isso, os seus absintos lhe ficariam dando voltas na barriga. Olhe, doutor, quer puxar a manga? .. Mais em cima … Assim … Bem … Agora a calça … Espere, vou tirar-lhe os sapatos … Está bem. Agora, conserve-o de pé para que eu arrume a cama. .. Pronto… Vamos deitá-lo. .. Se pensa que ele se afastará daqui a pouco para ceder-me lugar, o senhor está enganado. Terei que arranjar um cantinho, seja onde for. Isso não o preocupa. Ah, que estróina!
Ao sentir que estava estendido debaixo das cobertas, o velho fechou os olhos, tornou a abri-los e novamente os fechou, enquanto uma enérgica determinação de dormir se lhe refletia no rosto satisfeito.
O médico indagou, depois de observá-lo com acrescido interesse:
- Então, ele gosta de fingir-se de moço nos bailes à fantasia?
- Em todos, doutor, e só volta pela manhã, num estado que ninguém pode imaginar. Veja, é a tristeza que o leva aos salões, e que o obriga a colocar um rosto de papelão sobre o próprio. Sim, a tristeza de não ser mais o que já foi, e também de não obter mais o mesmo sucesso que já obteve!
O velho dormia, agora, e começava a roncar. Ela contemplou-o com ar apiedado e prosseguiu:
- Ah! Saiba o senhor que este homem já fez muito sucesso! Muito mais do que seria de supor, mais do que senhores elegantes da sociedade, mais do que todos os tenores e todos os generais.
Realmente? Que fazia ele?
- Oh! O senhor vai ficar surpreendido, no começo, pois não o conheceu nos seus belos tempos. Quando o encontrei, também num baile, porque ele sempre os freqüentou, fiquei presa, ao vê-lo, presa como um peixe no anzol. Ele era bonito, doutor, bonito a ponto de fazer vir lágrimas aos olhos quando o fitávamos, com seus cabelos negros como um corvo, crespos, e uns olhos negros do tamanho de janelas. Ah, sim, era um belo rapaz. Nessa noite ele me levou consigo, e não mais o deixei, nunca, nem por um só dia, apcsar de tudo! Oh! Fez-me comer fogo!
O médico indagou: – Casaram-se?
Ela respondeu, com simplicidade:
- Sim … Sem isso ele me teria largado, como largou as outras. Fui sua mulher e sua criada, tudo, tudo quanto quis … e fez-me chorar … lágrimas que não lhe deixei ver! Pois me descrevia as suas aventuras … a mim … a mim … doutor, sem compreender o mal que me fazia ouvi-lo falar …
- Afinal, que profissão tinha?
- É verdade … Esqueci-me de contar. Era o primeiro ajudante de Martel, mas um primeiro ajudante como não houve outro igual. .. Um artista de dez francos a hora, em média …
- Martel? Quem é esse Martel? …
O cabeleireiro, doutor, o grande cabeleireiro da Ópera, de quem todas as atrizes eram freguesas. Sim, todas as atrizes, mesmo as mais emproadas, faziam questão de ser penteadas por Ambroise, e davam-lhe gratificações que o enriqueceram. Ah, doutor, todas as mulheres são iguais, sim, todas. Quando um homem lhes agrada, elas o tomam. É tão fácil. .. e causa tanta mágoa quando a gente sabe! Pois ele me contava tudo .. .” Não podia calar-se … Não, não podia. Essas coisas causam tanto prazer aos homens! Talvez mais ainda quando as contam do que quando as fazem …
“Quando o via regressar, à noite, um pouco pálido, com um jeito satisfeito, o olhar brilhante, dizia comigo mesma: “Mais uma. Tenho a certeza de que arranjou mais uma.” E sentia vontade de interrogá-lo, uma vontade que me dilacerava o coração, e também vontade de nada saber, de impedir que falasse quando a isso se dispusesse. E nos entreolhávamos.
“Sabia bem que ele não se calaria, que ia tocar no assunto. Sentia-o pelo seu jeito, pelo jeito risonho com que me dava a entender: “Tive uma boa, hoje, Madeleine”. Fingia nada ver, nada perceber; e punha a mesa; trazia a sopa; sentava-me à frente dele.
“Naqueles momentos, doutor, era como se esmagassem com uma pedra, no meu corpo, a minha amizade por ele. Doia, sim, e bastante. Mas ele não percebia, não sabia; tinha necessidade de contar aquilo a alguém, de gabar-se, de mostrar que era amado. .. E só a mim podia contar. .. O senhor compreende. .. Só a mim. ” Então … eu precisava escutá-lo e engolir aquilo como se fosse veneno.
“Ele começava a tomar a sopa e depois dizia: “- Mais uma, Madeleine.
“Eu pensava: “Pronto. Meu Deus, que homem! Por que fui encontrá-lo?
“E ele continuava: – Mais uma, e bem bonita! – Tratava-se de uma pequena do Vaudeville ou então de uma pequena das Varietés, ou também de alguma dessas senhoras do teatro, das mais importantes, das mais conhecidas. Dava-me seus nomes, descrevia-me seus móveis, e tudo, tudo, sim, tudo, senhor … Pormenores que me dilaceravam o coração. E ele insistia, e recomeçava a história, do começo ao fim, tão contente que eu fingia rir-me para que não se zangasse comigo.
“Talvez nem tudo fosse verdade! Gostava tanto de gabar-se que seria muito capaz de inventar coisas desse gênero! Mas também podia ser verdade! Nessas noites, ele se queixava de cansaço, queria deitar-se logo depois da ceia. Ceávamos às onze horas, pois nunca ele regressava mais cedo, por causa dos penteados dos saraus.
“Quando terminava de contar a sua aventura, fumava cigarros, passeava pelo quarto e era tão bonito, com seus bigodes e seus cabelos crespos, que eu ponderava: “É verdade, mesmo, o que me contou. Já que sou louca por esse homem, por que as outras também não se apaixonariam?” Ah! Muitas vezes tive vontade de chorar, de gritar, de fugir, de atirar-me pela janela, enquanto tirava a mesa e ele continuava a fumar. Bocejava, abrindo a boca para mostrar quão cansado estava, e dizia duas ou três vezes, antes de meter-se na cama: “Meu Deus, como vou dormir bem esta noite!”
“Não lhe guardo rancor, pois não sabia quanto me magoava. Não, não podia saber! Gostava de gabar-se das mulheres como um pavão que desdobra a cauda. Chegara ao ponto de achar que todas o olhavam e o desejavam.
“Foi duro para ele quando envelheceu.
“Oh, doutor, ao ver seu primeiro cabelo branco, senti uma emoção que me fez perder o fôlego, e depois uma alegria – uma alegria perversa, mas tão grande, tão grande!!! Disse comigo mesma: “É o fim … é o fim … ” Pareceu-me que iam tirar-me de uma prisão. Seria meu, só meu, quando as outras não o quisessem mais.
“Era de manhã, estávamos na cama. Ele ainda dormia, e me inclinava para despertá-lo, beijando-o, quando divisei nos seus cabelos, na têmpora, um fiozinho que brilhava como prata. Que surpresa! Não teria acreditado que aquilo fosse possível! Primeiro pensei em arrancá-lo, para que ele não o visse! Porém, examinando melhor, avistei outro, um pouco acima. Cabelos brancos! Ele ia ter cabelos brancos! Meu coração pulsava e eu transpirava; contudo, estava bem contente, no fundo!
“É feio pensar assim, mas tive prazer em cuidar da casa naquela manhã, antes de acordá-lo; e quando ele abriu os olhos espontaneamente, eu lhe disse:
“- Sabe o que descobri enquanto você dormia? “- Não.
“- Descobri que está com cabelos brancos.
“Ele teve um sobressalto de despeito, que o pôs sentado como se eu lhe tivesse feito cócegas, e observou, com uma expressão má:
“- Não é verdade!
“- Sim, na têmpora esquerda. São quatro. “Ele saltou da cama para correr ao espelho.
“Não encontrou os cabelos brancos. Então lhe mostrei o primeiro, aquele crespinho, mais embaixo. E comentei:
“- Não é de admirar, com a vida que você leva. Daqui a dois anos estará acabado.
“Pois bem, doutor, eu falava a verdade: ninguém o reconheceria dois anos depois. Como é possível um homem mudar tão depressa! Ainda era bonito, mas ia perdendo a frescura, e as mulheres já não o procuravam mais. Ah, que vida dura levei naqueles tempos! Bem boas ele me fez sofrer! Nada lhe agradava, absolutamente nada! Abandonou sua profissão para fabricar chapéus, e perdeu dinheiro. Depois quis ser ator e falhou, e em seguida começou a freqüentar bailes públicos. Afinal, teve o bom senso de guardar um pouco de dinheiro, com o qual vivemos. Dá, mas não é grande coisa! E dizer-se que houve um momento em que podia ser considerado quase rico!
“O senhor viu o que ele faz agora. É uma espécie de delírio que o possui. Precisa sentir-se jovem, precisa dançar com mulheres que cheirem a perfume e a brillhantina. Coitado do meu querido velho!”
Emocionada, prestes a chorar, ela contemplava o velho marido, que roncava. Depois, aproximando-se com passos cautelosos, beijou-lhe os cabelos. O médico levantara-se e preparava-se para retirar-se, não encontrando o que dizer ante aquele estranho caso.
Porém, ao vê-lo sair, ela indagou:
- Assim mesmo, não quer deixar o seu endereço? Se ele piorar, irei chamá-lo.
Guy de Maupassant

Extraído do site A Gata por um Fio
http://contosdocovil.wordpress.com/category/guy-de-maupassant/
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quarta-feira, 13 de abril de 2011

A Terceira Margem do Rio - Guimarães Rosa

A Terceira Margem do Rio
Guimarães Rosa

Nosso pai era homem cumpridor, ordeiro, positivo; e sido assim desde mocinho e menino, pelo que testemunharam as diversas sensatas pessoas, quando indaguei a informação. Do que eu mesmo me alembro, ele não figurava mais estúrdio nem mais triste do que os outros, conhecidos nossos. Só quieto. Nossa mãe era quem regia, e que ralhava no diário com a gente — minha irmã, meu irmão e eu. Mas se deu que, certo dia, nosso pai mandou fazer para si uma canoa.

Era a sério. Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água por uns vinte ou trinta anos. Nossa mãe jurou muito contra a idéia. Seria que, ele, que nessas artes não vadiava, se ia propor agora para pescarias e caçadas? Nosso pai nada não dizia. Nossa casa, no tempo, ainda era mais próxima do rio, obra de nem quarto de légua: o rio por aí se estendendo grande, fundo, calado que sempre. Largo, de não se poder ver a forma da outra beira. E esquecer não posso, do dia em que a canoa ficou pronta.

Sem alegria nem cuidado, nosso pai encalcou o chapéu e decidiu um adeus para a gente. Nem falou outras palavras, não pegou matula e trouxa, não fez a alguma recomendação. Nossa mãe, a gente achou que ela ia esbravejar, mas persistiu somente alva de pálida, mascou o beiço e bramou: — "Cê vai, ocê fique, você nunca volte!" Nosso pai suspendeu a resposta. Espiou manso para mim, me acenando de vir também, por uns passos. Temi a ira de nossa mãe, mas obedeci, de vez de jeito. O rumo daquilo me animava, chega que um propósito perguntei: — "Pai, o senhor me leva junto, nessa sua canoa?" Ele só retornou o olhar em mim, e me botou a bênção, com gesto me mandando para trás. Fiz que vim, mas ainda virei, na grota do mato, para saber. Nosso pai entrou na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa saiu se indo — a sombra dela por igual, feito um jacaré, comprida longa.

Nosso pai não voltou. Ele não tinha ido a nenhuma parte. Só executava a invenção de se permanecer naqueles espaços do rio, de meio a meio, sempre dentro da canoa, para dela não saltar, nunca mais. A estranheza dessa verdade deu para. estarrecer de todo a gente. Aquilo que não havia, acontecia. Os parentes, vizinhos e conhecidos nossos, se reuniram, tomaram juntamente conselho.

Nossa mãe, vergonhosa, se portou com muita cordura; por isso, todos pensaram de nosso pai a razão em que não queriam falar: doideira. Só uns achavam o entanto de poder também ser pagamento de promessa; ou que, nosso pai, quem sabe, por escrúpulo de estar com alguma feia doença, que seja, a lepra, se desertava para outra sina de existir, perto e longe de sua família dele. As vozes das notícias se dando pelas certas pessoas — passadores, moradores das beiras, até do afastado da outra banda — descrevendo que nosso pai nunca se surgia a tomar terra, em ponto nem canto, de dia nem de noite, da forma como cursava no rio, solto solitariamente. Então, pois, nossa mãe e os aparentados nossos, assentaram: que o mantimento que tivesse, ocultado na canoa, se gastava; e, ele, ou desembarcava e viajava s'embora, para jamais, o que ao menos se condizia mais correto, ou se arrependia, por uma vez, para casa.

No que num engano. Eu mesmo cumpria de trazer para ele, cada dia, um tanto de comida furtada: a idéia que senti, logo na primeira noite, quando o pessoal nosso experimentou de acender fogueiras em beirada do rio, enquanto que, no alumiado delas, se rezava e se chamava. Depois, no seguinte, apareci, com rapadura, broa de pão, cacho de bananas. Enxerguei nosso pai, no enfim de uma hora, tão custosa para sobrevir: só assim, ele no ao-longe, sentado no fundo da canoa, suspendida no liso do rio. Me viu, não remou para cá, não fez sinal. Mostrei o de comer, depositei num oco de pedra do barranco, a salvo de bicho mexer e a seco de chuva e orvalho. Isso, que fiz, e refiz, sempre, tempos a fora. Surpresa que mais tarde tive: que nossa mãe sabia desse meu encargo, só se encobrindo de não saber; ela mesma deixava, facilitado, sobra de coisas, para o meu conseguir. Nossa mãe muito não se demonstrava.

Mandou vir o tio nosso, irmão dela, para auxiliar na fazenda e nos negócios. Mandou vir o mestre, para nós, os meninos. Incumbiu ao padre que um dia se revestisse, em praia de margem, para esconjurar e clamar a nosso pai o 'dever de desistir da tristonha teima. De outra, por arranjo dela, para medo, vieram os dois soldados. Tudo o que não valeu de nada. Nosso pai passava ao largo, avistado ou diluso, cruzando na canoa, sem deixar ninguém se chegar à pega ou à fala. Mesmo quando foi, não faz muito, dos homens do jornal, que trouxeram a lancha e tencionavam tirar retrato dele, não venceram: nosso pai se desaparecia para a outra banda, aproava a canoa no brejão, de léguas, que há, por entre juncos e mato, e só ele conhecesse, a palmos, a escuridão, daquele.

A gente teve de se acostumar com aquilo. Às penas, que, com aquilo, a gente mesmo nunca se acostumou, em si, na verdade. Tiro por mim, que, no que queria, e no que não queria, só com nosso pai me achava: assunto que jogava para trás meus pensamentos. O severo que era, de não se entender, de maneira nenhuma, como ele agüentava. De dia e de noite, com sol ou aguaceiros, calor, sereno, e nas friagens terríveis de meio-do-ano, sem arrumo, só com o chapéu velho na cabeça, por todas as semanas, e meses, e os anos — sem fazer conta do se-ir do viver. Não pojava em nenhuma das duas beiras, nem nas ilhas e croas do rio, não pisou mais em chão nem capim. Por certo, ao menos, que, para dormir seu tanto, ele fizesse amarração da canoa, em alguma ponta-de-ilha, no esconso. Mas não armava um foguinho em praia, nem dispunha de sua luz feita, nunca mais riscou um fósforo. O que consumia de comer, era só um quase; mesmo do que a gente depositava, no entre as raízes da gameleira, ou na lapinha de pedra do barranco, ele recolhia pouco, nem o bastável. Não adoecia? E a constante força dos braços, para ter tento na canoa, resistido, mesmo na demasia das enchentes, no subimento, aí quando no lanço da correnteza enorme do rio tudo rola o perigoso, aqueles corpos de bichos mortos e paus-de-árvore descendo — de espanto de esbarro. E nunca falou mais palavra, com pessoa alguma. Nós, também, não falávamos mais nele. Só se pensava. Não, de nosso pai não se podia ter esquecimento; e, se, por um pouco, a gente fazia que esquecia, era só para se despertar de novo, de repente, com a memória, no passo de outros sobressaltos.

Minha irmã se casou; nossa mãe não quis festa. A gente imaginava nele, quando se comia uma comida mais gostosa; assim como, no gasalhado da noite, no desamparo dessas noites de muita chuva, fria, forte, nosso pai só com a mão e uma cabaça para ir esvaziando a canoa da água do temporal. Às vezes, algum conhecido nosso achava que eu ia ficando mais parecido com nosso pai. Mas eu sabia que ele agora virara cabeludo, barbudo, de unhas grandes, mal e magro, ficado preto de sol e dos pêlos, com o aspecto de bicho, conforme quase nu, mesmo dispondo das peças de roupas que a gente de tempos em tempos fornecia.

Nem queria saber de nós; não tinha afeto? Mas, por afeto mesmo, de respeito, sempre que às vezes me louvavam, por causa de algum meu bom procedimento, eu falava: — "Foi pai que um dia me ensinou a fazer assim..."; o que não era o certo, exato; mas, que era mentira por verdade. Sendo que, se ele não se lembrava mais, nem queria saber da gente, por que, então, não subia ou descia o rio, para outras paragens, longe, no não-encontrável? Só ele soubesse. Mas minha irmã teve menino, ela mesma entestou que queria mostrar para ele o neto. Viemos, todos, no barranco, foi num dia bonito, minha irmã de vestido branco, que tinha sido o do casamento, ela erguia nos braços a criancinha, o marido dela segurou, para defender os dois, o guarda-sol. A gente chamou, esperou. Nosso pai não apareceu. Minha irmã chorou, nós todos aí choramos, abraçados.

Minha irmã se mudou, com o marido, para longe daqui. Meu irmão resolveu e se foi, para uma cidade. Os tempos mudavam, no devagar depressa dos tempos. Nossa mãe terminou indo também, de uma vez, residir com minha irmã, ela estava envelhecida. Eu fiquei aqui, de resto. Eu nunca podia querer me casar. Eu permaneci, com as bagagens da vida. Nosso pai carecia de mim, eu sei — na vagação, no rio no ermo — sem dar razão de seu feito. Seja que, quando eu quis mesmo saber, e firme indaguei, me diz-que-disseram: que constava que nosso pai, alguma vez, tivesse revelado a explicação, ao homem que para ele aprontara a canoa. Mas, agora, esse homem já tinha morrido, ninguém soubesse, fizesse recordação, de nada mais. Só as falsas conversas, sem senso, como por ocasião, no começo, na vinda das primeiras cheias do rio, com chuvas que não estiavam, todos temeram o fim-do-mundo, diziam: que nosso pai fosse o avisado que nem Noé, que, por tanto, a canoa ele tinha antecipado; pois agora me entrelembro. Meu pai, eu não podia malsinar. E apontavam já em mim uns primeiros cabelos brancos.



Sou homem de tristes palavras. De que era que eu tinha tanta, tanta culpa? Se o meu pai, sempre fazendo ausência: e o rio-rio-rio, o rio — pondo perpétuo. Eu sofria já o começo de velhice — esta vida era só o demoramento. Eu mesmo tinha achaques, ânsias, cá de baixo, cansaços, perrenguice de reumatismo. E ele? Por quê? Devia de padecer demais. De tão idoso, não ia, mais dia menos dia, fraquejar do vigor, deixar que a canoa emborcasse, ou que bubuiasse sem pulso, na levada do rio, para se despenhar horas abaixo, em tororoma e no tombo da cachoeira, brava, com o fervimento e morte. Apertava o coração. Ele estava lá, sem a minha tranqüilidade. Sou o culpado do que nem sei, de dor em aberto, no meu foro. Soubesse — se as coisas fossem outras. E fui tomando idéia.

Sem fazer véspera. Sou doido? Não. Na nossa casa, a palavra doido não se falava, nunca mais se falou, os anos todos, não se condenava ninguém de doido. Ninguém é doido. Ou, então, todos. Só fiz, que fui lá. Com um lenço, para o aceno ser mais. Eu estava muito no meu sentido. Esperei. Ao por fim, ele apareceu, aí e lá, o vulto. Estava ali, sentado à popa. Estava ali, de grito. Chamei, umas quantas vezes. E falei, o que me urgia, jurado e declarado, tive que reforçar a voz: — "Pai, o senhor está velho, já fez o seu tanto... Agora, o senhor vem, não carece mais... O senhor vem, e eu, agora mesmo, quando que seja, a ambas vontades, eu tomo o seu lugar, do senhor, na canoa!..." E, assim dizendo, meu coração bateu no compasso do mais certo.

Ele me escutou. Ficou em pé. Manejou remo n'água, proava para cá, concordado. E eu tremi, profundo, de repente: porque, antes, ele tinha levantado o braço e feito um saudar de gesto — o primeiro, depois de tamanhos anos decorridos! E eu não podia... Por pavor, arrepiados os cabelos, corri, fugi, me tirei de lá, num procedimento desatinado. Porquanto que ele me pareceu vir: da parte de além. E estou pedindo, pedindo, pedindo um perdão.

Sofri o grave frio dos medos, adoeci. Sei que ninguém soube mais dele. Sou homem, depois desse falimento? Sou o que não foi, o que vai ficar calado. Sei que agora é tarde, e temo abreviar com a vida, nos rasos do mundo. Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.

Texto extraído do livro "Primeiras Estórias", Editora Nova Fronteira - Rio de Janeiro, 1988, pág. 32, cuja compra e leitura recomendamos.

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O gato preto - Edgar Allan Poe

O gato preto - Edgar Allan Poe

quarta-feira, 2 de fevereiro de 2011

Vestibular UFSC 2012 - Obras selecionadas 3º Ano do Ensino Médio

Obras e Autores para o próximo vestibular
Vestibular UFSC/2012
Obra/ autor

1. Inocência, de Visconde de Taunay
Editora: Div. Editoras / Portal Domínio Público

2. Memórias de um Sargento de Milícias, de Manoel ANtônio de Almeida Editora: Diversas Editoras / Biblioteca Nacional Digital

3. O Pagador de Promessas, de Dias Gomes
Editora: Bertrand/Ediouro

4. AMRIK, de Ana Miranda
Editora: Companhia das Letras

5. Jorge, um brasileiro, de Oswaldo França Júnior
Editora: Nova Fronteira

6. Viagem & Vaga Música, de Cecília Meireles
Editora: Nova Fronteira

7. A Cidade Ilhada, de Milton Hatoun
Editora: Companhia das Letras

8. Treze Cascaes, de Adolfo Boss e Outros
Editora: Fundação Franklin Cascaes
______________________________________________________________________

OBSERVAÇÕES IMPORTANTES:
a) Recomenda-se a leitura integral das obras.
b) O conhecimento dessas obras supõe capacidade de análise e interpretação de textos, bem como o reconhecimento de aspectos próprios aos diferentes gêneros.
c) Entende-se que é necessário conhecer também o contexto histórico, social, cultural e estético de cada obra.

Fonte: www.ufsc.br

segunda-feira, 24 de janeiro de 2011

Os dias escuros

Os dias escuros
Carlos Drummond de Andrade

Amanheceu um dia sem luz – mais um – e há um grande silêncio na rua. Chego à janela e não vejo as figuras habituais dos primeiros trabalhadores. A cidade, ensopada de chuva, parece que desistiu de viver. Só a chuva mantém constante seu movimento entre monótono e nervoso. É hora de escrever, e não sinto a menor vontade de fazê-lo. Não que falte assunto. O assunto aí está, molhando, ensopando os morros, as casas, as pistas, as pessoas, a alma de todos nós. Barracos que se desmancham como armações de baralho e, por baixo de seus restos, mortos, mortos, mortos.

Sobreviventes mariscando na lama, à pesquisa de mortos e de pobres objetos amassados. Depósito de gente no chão das escolas, e toda essa gente precisando de colchão, roupa de corpo, comida, medicamento. O calhau solto que fez parar a adutora. Ruas que deixam de ser ruas, porque não dão mais passagem. Carros submersos, aviões e ônibus interestaduais paralisados, corrida a mercearias e supermercados como em dia de revolução. O desabamento que acaba de acontecer e os desabamentos programados para daqui a poucos instantes.

Este, o Rio que tenho diante dos olhos, e, se não saio à rua, nem por isso a imagem é menos ostensiva, pois a televisão traz para dentro de casa a variada pungência de seus horrores. Sim, é admirável o esforço de todo mundo para enfrentar a calamidade e socorrer as vítimas, esforço que chega a ser perturbador pelo excesso de devotamento desprovido de técnica. Mas se não fosse essa mobilização espontânea do povo, determinada pelo sentimento humano, à revelia do governo incitando-o à ação, que seria desta cidade, tão rica de galas e bens supérfluos, e tão miserável em sua infraestrutura de submoradia, de subalimentação e de condições primitivas de trabalho? Mobilização que de certo modo supre o eterno despreparo, a clássica desarrumação das agências oficiais, fazendo surgir de improviso, entre a dor, o espanto e a surpresa, uma corrente de afeto solidário, participante, que procura abarcar todos os flagelados.

Chuva e remorso juntam-se nestas horas de pesadelo, a chuva matando e destruindo por um lado, e, por outro, denunciando velhos erros sociais e omissões urbanísticas; e remorso, por que escondê-lo? Pois deve existir um sentimento geral de culpa diante de cidade tão desprotegida de armadura assistencial, tão vazia de meios de defesa da existência humana, que temos o dever de implantar e entretanto não implantamos, enquanto a chuva cai e o bueiro entope e o rio enche e o barraco desaba e a morte se instala, abatendo-se de preferência sobre a mão de obra que dorme nos morros sob a ameaça contínua da natureza; a mão de obra de hoje, esses trabalhadores entregues a si mesmos, e suas crianças que nem tiveram tempo de crescer para cumprimento de um destino anônimo.

No dia escuro, de más notícias esvoaçando, com a esperança de milhões de seres posta num raio de sol que teima em não romper, não há alegria para a crônica, nem lhe resta outro sentido senão o triste registro da fragilidade imensa da rica, poderosa e martirizada cidade do Rio de Janeiro.
Correio da Manhã, 14/01/1966

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